Bu’ú Kennedy e Sofia Lotti

O encantamento da memória gráfica e pictórica

29 de agosto a
30 de setembro de 2023

Galeria Luis Maluf
Rua Peixoto Gomide, 1887

Bu’ú Kennedy e Sofia Lotti:
o encantamento da memória gráfica e pictórica

 

Céu azul
Que venha até
Onde os pés
Tocam na terra
E a terra inspira
E exala seus azuis (1)

Caetano Veloso

Realidade e sonho, delírio e razão, memória e registro, representação e abstração – essas são algumas das dicotomias conjugadas nas fabulações poéticas perceptíveis no corpo de trabalhos de Bu’ú Kennedy e Sofia Lotti. Cada um, ao seu modo, promove um exercício plástico-visual de entrelaçamentos da riqueza paisagística e gráfica da vida em contato com a natureza, seja em sonho seja na experiência despertos. Os caminhos poéticos conduzidos na exposição fazem acender o olhar para força pictórica e formal do que foi possível representar ou subverter pela dupla posta em aproximação.

Desse modo, pelo encantamento da memória gráfica e pictórica, dois universos artísticos vão ao encontro do zigue-zague espacial da Galeria Luis Maluf. Bu’ú Kennedy (1978, Alto Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira, Amazonas) traz em sua produção em marchetaria a força de nossa arte contemporânea indígena, fiel à tradição e aos conhecimentos de sua origem advinda do povo Ye’pamahsã, conhecido como Tucano. Já Sofia Lotti (1991, Poços de Caldas, Minas Gerais) promove uma renovação de algumas técnicas clássicas da arte – desenhos, pastéis, pinturas e tapeçarias – por meio de um exercício permanente de representação e, também, de desconstrução da ideia de paisagem.

Em tempo das crises do antropoceno, ambos devotam o olhar para a natureza e nos restauram o encantamento por ela. Em um processo contínuo de tradução, as experiências de ambos promovem representações em cores da vida que nos é iluminada pelo exercício poético da razão. Todavia, isso acontece de maneira distinta, ao desbravarem um universo de cores, formas e grafias do que são capazes de enxergar.

Não esperem apenas conforto ou apaziguamento, há um real ponto de contato entre essas práticas poéticas que é exatamente o oposto desse sentimento presente na superfície: uma espécie de vertigem visual, um desdobramento da força visionária da arte. Não falo aqui da vertigem como uma patologia, descrita em sintomas, mas de um estado de consciência capaz de poder ver uma paisagem (ou mesmo uma miragem) de forma apurada, sempre atento ao fato de que aquilo que se posta diante dos olhos não está imune ao movimento que a passagem do tempo registra. Somos então seduzidos pelo olhar do outro, encantado em cada uma das obras apresentadas.  E, por isso, acabamos atraídos por elas, algo distinto do que entendemos por predileções ou meras escolhas supersticiosas. Na lógica da arte que agora nos é apresentada, os trabalhos são na verdade apuros técnico-poéticos, produzidos na madeira trabalhada por Bu’ú ou nos traços e formas dos desenhos e da tapeçaria de Sofia.

Sofia Lotti, por exemplo, traz para essa mostra uma seleção de trabalhos que arranjam três caminhos de sua sofisticada manualidade: desenhos traçados com materiais diversos, o pastel seco (um lugar transitório e ambíguo, entre o desenho e a pintura) e a tecelagem manual revertida em tapeçarias. Da amplitude de uma paisagem que dignifica a expressão “até onde a vista alcança” aos movimentos delicados e exuberantes de uma planta em floração, a artista nos oferece uma memória daquilo que ela capta e interpreta da natureza. No processo de trabalho dela, em especial nos pastéis, a fotografia veio enquanto registro de um momento, aprisionando-se o próprio tempo. Dessa imagem e por meio de sua memória sensitiva, Sofia decompõe a imagem, para depois recompô-la pictoricamente. Quando vistos em conjunto, seus traços, suas manchas de cor e seus volumes construídos registram um léxico pictórico e gráfico próprio.

As composições vertiginosas que vemos nas tapeçarias e nos pastéis embaralham nossa identificação de quais ambientes estamos vendo. Só reconhecemos melhor o contexto, quando acessamos os títulos descritivos de cada peça, pequenas pistas de signos. Até que ponto é necessário identificar a localidade? Existe, enfim, um lugar transitório que conecte as paisagens gélidas de uma Noruega interiorana com o cerrado ou o sertão mineiro? Essas presenças geográficas em seus trabalhos acabam por conviver de maneira indistinta em seus trabalhos, especialmente a partir da maneira como foram expostos. Muitas das imagens encantadas da artista nos põem no lugar da dúvida.

Nesse embaralhamento do olhar, acontece um efeito que se reverte em movimento espacial da cor quando da nossa percepção mais demorada. Sugere-se um passeio pictórico, trilhado pelo movimento do olhar ao longo das massas de cor que são dispostas. Acompanhamos a escolha intencional da artista que tenta decompor o tom que viveu na natureza. Por isso, com propósito, há o consciente transbordamento da cor para o limite sugerido pela moldura colorida. Mesmo pela sua função primeira de delimitação do corpo bidimensional, a moldura ganha também uma valoração compositiva. Por sua vez, na tapeçaria, a borda e a estrutura são em sua maioria irregulares, gerando eventuais volumes, tensões ou abaulados. Há, desse modo, uma vida do material que é respeitada e tomada como parte do trabalho.

Bu’ú Kennedy, por seu turno, nos apresenta a composição de seus grafismos pictóricos ancorado em um saber ancestral, feitos a partir da diversidade construtiva da marchetaria. É no plano bidimensional de suas peças em madeira que se impregnam ritmos, perspectivas, caminhos e formas: todas elas são representações do que a natureza é capaz de nos dizer e nos orientar. Em certos momentos, com aquilo que nós chamamos de um estado alterado da consciência, o artista simboliza um léxico próprio de sua cultura indígena tucana, desembocando no universo das cores da natureza. Percebe-se uma intrincada elaboração de signos que perpassam seus saberes indissociados de uma força espiritual capaz de trabalhar as possibilidades de cura e restauração. É um vocabulário gráfico-geométrico que se apresenta pela repetição em linha de símbolos e cores, como, por exemplo, pode ser visto no trabalho Se’ã Dia’poá wahsé kaapi’tʉ hori. É quase como uma “tábua manifesto” que personifica a sabedoria ancestral, da qual o artista é legítimo representante e guardião.

O ato de ritualizar em busca do cuidado com o outro também se presentifica pela produção pictórica, podendo enveredar para uma representação da abundante paisagem que o cerca em presença ou em sonho. Basta olhar com atenção para a obra Hori Mihpĩ, onde uma precisa arquitetura do desenho se materializa, colocando em compasso dois signos: Hori/Cores e Mihpĩ/Açai. Reproduz-se, portanto, o que o artista nos contou: o açaí é um fruto que traz em si uma energia e uma vitalidade especiais, contribuindo para florescer ideias, emanando prosperidade e abundância. Não é à toa que a vertigem provocada pela imagem é fruto de sua intrincada construção que tece os caminhos das cores da vida, ao mesmo tempo em que abstrai a própria estrutura eloquente da palha de açaí.

A única figuração do artista presente na exposição é, na verdade, a miragem de um cenário vislumbrado pelo artista. Ele percebeu a presença de uma mulher na paisagem de um rio integrado à natureza da floresta. Bu’ú nos contou que tal imagem veio com força após seu rito com ayahuasca. O próprio desenrolar da memória foi  tomado pela potência do que ele mesmo chama de “beber a luz do conhecimento”. A iluminação, portanto, é agora de outra ordem. Curiosamente, nessa peça a pigmentação da madeira tem menor força e não apresenta contrastes sublinhados de maneira enérgica. O foco está nos traços da representação figurativa que são bem mais evidentes e precisos. Independente de que caminho formal o artista construa, há o apreço por fortalecer passagens simbólicas e efetivas para uma arte contemporânea indígena.

 

Paisagens em translação

Como gostaríamos de afirmar, há sim o nosso encantamento pelas paisagens e representações ilustradas. Entretanto, é algo que se porta muito além das formalidades técnicas de cada um. A meu ver, os trabalhos em conjunto são exercícios indeléveis de sedução pela forma, cor e material que nos atraem para uma percepção mais acurada: ver para além da imagem descrita.

Ao alcance de nossas vistas, cada obra instalada evoca o repertório de ambas as práticas artísticas, nos apresentando uma memória gráfica e visual de suas experiências cotidianas, quase que como algo análogo a ideia da translação, um caminho mais elíptico, mais duradouro e menos objetivo. Esse caminho é perceptível pela potência visual das memórias de Bu’ú, muitas vezes ativadas em seus rituais de cura, e nas paragens percorridas e visitadas pela Sofia mundo afora (e por ela subvertidas).

Para ajudar no entendimento desses movimentos mencionados, trago um exemplo da música. Há mais de 40 anos, um dos nossos maiores artistas em atividade, compôs a canção Luz do Sol, da qual tomo alguns versos emprestados para compor a epígrafe. Assim, como há um movimento sonoro e lírico que parece evocar inclusive a ideia de volta e até mesmo da translação, pois enuncia ademais os ciclos de luz e vida, cada obra apresentada na exposição – tanto do Bu’ú como da Sofia – contém também um movimento ativo de transformação do suposto ambiente natural e bucólico.

Ora com maior apreço pela realidade na captura da paisagem ora de forma mais subvertida, há em ambas as posturas um caminho mais elíptico de aproximação e de distensão, de detalhe e de distanciamento, do que é visionário e do que é representativo, do que é imaginação e do que é real, do que é chão e matéria e do que é céu e etéreo. De certo, existe um trânsito em curso, o mesmo movimento do azul que está na canção que vai do céu para a terra e da terra para o céu. Ao fim e ao cabo, vemos algo que é traduzido pela presença magnânima da luz, em especial, a que solariza os acontecimentos da vida.

Diego Matos, 22 de agosto de 2023.


(1) Versos da canção Luz do Sol (1982), composta pelo artista brasileiro Caetano Veloso e gravada, em especial, em discos do próprio compositor e das artistas Nara Leão e Gal Costa. A música foi tema musical do filme de Fábio Barreto, intitulado “Índia, a filha do sol”, em 1982.