Na Simples e Suave Coisa
Suave, Coisa Nenhuma
03 de abril a
18 de maio de 2024
Usina Luis Maluf
Rua Brigadeiro Galvão, 996
Barra Funda, São Paulo, SP
Na Simples e Suave Coisa
Suave, Coisa Nenhuma
Que as artes visuais sempre flertaram e se multifacetaram com outras disciplinas, disso já sabemos. Mas o modo como esses câmbios se dão é sempre uma especificidade poética, entendendo assim essa palavra-abismo, a poética, como um conjunto de métodos, critérios e procedimentos particulares dos quais uma artista pode se valer para produzir arte, ou conviver com os enigmas singulares de sua criação. É daqui que partimos para adentrar a trajetória de Janet Vollebregt. Ela fez graduação em Arquitetura e Urbanismo, na Holanda, se especializando em projetos sustentáveis. E desenhar projetos arquitetônicos lhe instigou, pois, nesse empenho profissional, a criação em si era o que sempre mais lhe interessava.
Mas Janet se via restringida pelas normas de construção e as encarava como imposições, que em muito não priorizavam o bem estar e as percepções de quem iria conviver com os espaços arquitetônicos. Por conta dessa clareza de atuação, o trabalho de Janet tem uma especificidade quando discutido a partir de uma perspectiva multidisciplinar: não se trata de um diálogo entre arte e arquitetura, mas talvez de um fluxo, de um trânsito nada estável, tampouco reconhecível em seus limites conceituais, entre os dois modos de produzir. A consistência de sua obra se dá talvez pela ausência de fronteiras entre arte e arquitetura. Há em seu fazer uma inquietude em definir os seus campos de atuação. E a dimensão objetual de suas obras de arte nos diz sobre essa concentração em gestos e tempos de criação e acerca da perspectiva projetual que se alia a um outro campo de conhecimento.
Janet teve a chance de ganhar o mundo, morou em muitos países europeus, na Indonésia, na Tailândia, na Austrália, no Brasil. Desenvolveu projetos sociais, experimentou cotidianos culturais diversos e se abriu a muitas formas de conhecimento, como o Fen Shue e o Jin Shin Jyutsu, que, de modo resumido, pode ser compreendido como uma arte ancestral de cura e de harmonização da energia vital do corpo. Uma arte do bem viver, que seria inata da sabedoria humana. Esse encontro é definidor na trajetória de Vollebregt. Ser adepta ao Jin Shin Jyutsu lhe incentivou a pensar ainda mais os modos de conviver, criar e pensar os espaços. Contribuir com uma dimensão invisível, como ela bem traduz, da potência de campos energéticos é uma das intencionalidades de seus trabalhos. “Escolhi não ser terapeuta, mas uma artista que usufrui do Jin Shin Jyutsu, porque me interessa abrir os caminhos ou construir espaços em que as pessoas possam descobrir seu potencial íntimo de cura e bem viver. A arte, assim, é para mim um intermediário. Convida ao cuidado de si”, conta a artista.
Janet encontrou morada na Chapada dos Veadeiros, no estado de Goiás. Nesse ambiente rico e biodiverso, sua consciência se aguçou para outra questão importante em seu trabalho: sua produção cruza saberes e uma grande diversidade de gestos e métodos para desenhar espaços que se destinam a experiências, projetos instalativos, obras interativas, objetos para sentir, e, por isso, não há limites no que se refere à nacionalidade, nem para atender à risca uma doutrina religiosa. O Jin Shin Jyutsu atravessa sua poética e ela experimenta linguagens, como pintura e escultura, e manuseios de muitas matérias primas, como tinta óleo, acrílico, metais, pedras e cristais. Nessa pluralidade de meios e metamorfoses dos materiais, Janet percebe a arte como “uma ferramenta para comunicar o invisível”, ela explica.
A experiência de percepção do público está no cerne de suas intencionalidades, é como uma camada que faz o trabalho acontecer com plenitude. Texturas, cores, origens dos materiais, visualidades, composições e convivências entre matérias primas integram uma rede de interações perceptivas em que o corpo humano, seus chakras, o espaço, e os corpos de outros seres se relacionam de modo a afirmarem entre e para si suas presenças e seus estados de presença. Em seus trabalhos, presença é matéria em fluxo. E nesse sentido, a arte é uma espécie de registro material que se engaja em uma tarefa de estar no campo das nossas percepções e, daí, nos propõe alguns convites: o que é o real ou o que estamos vendo e percebendo pertence a que instância de real? E como criamos nossas experiências de real?
Em sua terceira mostra individual realizada no Brasil, Janet apresenta trabalhos produzidos recentemente. Ming Tang é uma série de 25 pinturas com pedras integradas. Representações bidimensionais de paisagens etéreas espelham pedras, como quartzo rosa, quartzo verde, angelita, malaquita, mangano calcita, fluorita. No Feng Shue, Ming Tang é a vista ampla que se tem da casa onde se habita. Uma vista ampla de sua própria casa influencia a sua visão de mundo. E é possível ampliar a vista da casa por meio da arte. Para Janet, pintura e escultura se conectam por suas energias. E assim se mantêm numa rede de energias. Pintura e pedras são matérias, apresentam-se em suas densidades, em seus tempos – geológicos, de criação e de percepção. Janet também propõe um projeto inédito: as Spirit Houses, esculturas instalativas, em latão, montadas em pedras de quartzo rosa, quartzo verde e ágata, que têm como referência as casas de espíritos tailandesas, destinadas a oferendas. Fazem parte da mostra também esculturas em latão, nomeadas por Janet como totens, que, inspiradas em culturas ancestrais, têm a intenção de sintonizar e unificar a natureza das energias em fluxo nos espaços, ou seja, de propor uma convivência entre o invisível, mas sensível, em alguma medida das nossas experiências.
Esses trabalhos são pensados a partir do que ela chama de “energia sutil”, algo que está disponível, vibrando e em troca com o ambiente. Cada ser, cada elemento do ambiente (pedras, terra, ar, fogo), cada espaço tem campos de energia em atividade. E sua mostra, segundo a própria artista, é uma homenagem à terra e às energias que podem se converter em presença. O título da mostra são versos apropriados da música “Amor”, lançada no disco “Secos e molhados”, pela banda de mesmo nome, em 1973, em um momento em que a ditadura militar do Brasil se mostrava muito violenta. A letra da música é também uma ode à leveza, à simplicidade, mas logo se converte numa contradição. Impossível esquecer de Ney Matogrosso dançando, de saia esvoaçante e pluma na cabeça. Sua voz acompanha a leveza e a oscilação do sentimento, da percepção e da experiência do amor (será?). “Na simples e suave coisa / Suave, coisa nenhuma” seria sua resposta. E assim, traçamos essa livre associação de experiências entre a letra e os trabalhos da mostra de Janet, que lidam com energias flutuantes, fluídas, sutis: “Leve, como leve pluma/ Muito leve, leve pousa”. Uma exposição-energia que se presentifica densa e forte, e também se vai e esvai por aí, como “Nuvem azul que arrefece”….
Galciani Neves
curadora