Mônica Ventura e Deco Adjiman

19 de outubro a
23 de novembro de 2024

Luis Maluf Galeria
Rua Peixoto Gomide, 1887
Jardins, São Paulo, SP

De tudo fica um pouco
Mônica Ventura e Deco Adjiman

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros”
(Trecho do poema Resíduos,
de Carlos Drummond de Andrade)

Discorrer sobre o tempo e a origem de nós e de tudo aquilo que nos rodeia é tarefa árdua. Antes de uma cronologia, o tempo é uma antologia, uma paisagem habitada pelo corpo, uma andança anterior à progressão, um modo de predispor os seres no cosmos. É sobre a passagem deste tempo, seu entrelaçar com a ancestralidade e sua inevitável relação com a transformação da matéria que se trata o diálogo contido em De tudo fica um pouco, exposição que une um recorte da prolífica produção artística de Mônica Ventura e Deco Adjiman, em cartaz na Galeria Luis Maluf.

Nessa esfera, tal entendimento vai de encontro às reflexões da poeta e ensaísta Leda Maria Martins e seu conceito sobre o tempo espiralar, percepção que entrelaça a ideia de que o passado habita o presente e o futuro, o que faz com que acontecimentos, desvestidos de uma cronologia linear, estejam em processo de uma perene metamorfose e, concomitantemente, correlacionados. Assim, vivenciar o tempo significa habitar uma temporalidade curvilínea, concebida como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola, simultaneamente, as instâncias temporais que constituem o sujeito. Tal união temporal desvela-se na obra em ambos artistas em questão. Ventura busca através do pincel e das formas tridimensionais que constrói uma amplificação de sua história ancestral. Remonta cosmogonias afro-ameríndias de conexão entre mitos e referências passadas transportando-as à atualidade. Já Adjiman faz da travessia sua expansão temporal. E nesse caminhar, o artista coleta, reúne e constrói narrativas imbuídas de poesia para falar sobre os diversos percursos possíveis do mundo.

O percurso expositivo é pontuado pela série de pinturas a óleo de grandes dimensões produzidas por Mônica Ventura. Intituladas Alteia (I, II e IV), de 2024, as obras apresentam contornos que nos remetem aos Zangbetos, guardiões vodu da noite dos cultos iorubá. Tais espíritos movimentam-se por meio da música e protegem os seres que os rodeiam. A relação espiritual ancestral que surge nas telas de Ventura permeia toda sua produção. Seja de forma bi ou tridimensional, a artista antropomorfiza sua linguagem, nos levando a questionar as formas e os estereótipos que habitamos e replicamos. Em outro momento, Ventura nos recebe com suas reconhecidas cabaças nas quais desenha narrativas cosmogônicas, que simbolizam o início de tudo e que replicam simbologias da história da humanidade.

Se o passado é o lugar de um saber e de uma experiência acumulativos, que consequentemente habitam o presente e o futuro, Deco Adjiman acessa tal ancestralidade ao tocar a terra. Seus trabalhos encontram cada qual o tempo das coisas de forma a evidenciar a dimensão possível a ser alcançada durante o trajeto. Mensurar a temporalidade dessa experiência pode ser vista em obras como Travessia ou os sete dias ou os 183 quilômetros sobre o chão de Rosa, de 2024. Com madeira, ferro, barbante e terra, o artista produziu o que simboliza sua passagem pelo sertão de Minas Gerais, um dos trajetos percorridos por Riobaldo, personagem central do clássico Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Recolher os vestígios que representem nossa vivência e passagem por neste mundo também está em Coleção de Chão, de 2021. A obra composta por 54 pequenos frascos com diferentes composições sedimentares instiga a reflexão sobre a unicidade de cada espaço, mas o encanto de sua composição como um único chão. A peça é acompanhada por um ensaio escrito pelo artista, em que devaneia sobre as definições de território.

A literatura e, consequentemente, a palavra são parte essencial do processo de Adjiman, assim como do próprio objeto final de seu trabalho. Versos estão contidos de forma explícita ou delicadamente inseridos de maneira subjetiva em todo o seu percurso. Em Cadernos de andaleço III, transcreve frases encontradas em livros e publicações que marcaram suas vivências, assim como algumas criadas pelo próprio artista. Já em De tudo fica um pouco, de 2024, Adjiman transforma as clássicas enciclopédias, hoje caídas no esquecimento, em outras vidas, inserindo em meio às suas páginas folhas secas coletadas no entorno. Se, como nos lembra Gaston Bachelard (1884-1962), o homem se perguntará indefinidamente de que lama, terra ou argila, ele mesmo é feito, aqui apresentamos um punhado de espaços, cosmologias e interpretações que misturam num tempo espiralar as possibilidades do ser. E de tudo isso fica um pouco de nós no mundo.

— Ana Carolina Ralston