Exposição Coletiva
16 de agosto de 2025 a
22 de outubro de 2025
Luis Maluf Galeria
Rua Peixoto Gomide, 1887
Jardins, São Paulo, SP
conceder às constelações que nos habitam o direito de sonhar em liberdade
ANA NEVES, AMANDA FAHUR, CAROLINE RICCA LEE, FLAVIA VENTURA, GUILHERME CALLEGARI, IAH’RA E JULIANA DOS SANTOS
São várias as temáticas que se configuram no território do corpo. Em 1947, Antonin Artaud apresentou o manifesto “Para acabar com o juízo de Deus”. Nele, o dramaturgo declarava uma guerra metafórica aos órgãos. Em sua prédica, o que Artaud realmente sugeria era o nascimento de um novo corpo, que fosse capaz de experimentar com plenitude a própria vida. Nas suas palavras, os órgãos representavam a funcionalidade, a finalidade e o sentido. Um novo corpo que não seja capaz de perceber os limites entre o interior e o exterior. Nesse aspecto, o que Artaud queria dizer é que, na sua visão, um corpo sem órgão seria um corpo em plena expansão.
Quase meio século depois, Gilles Deleuze e Félix Guattari retomam essas ideias iniciais de Artaud no livro Mil Platôs. Nele, os autores argumentam que a multiplicidade é inerente à própria realidade, explicitando que o corpo não é só organismo, o corpo é, ao mesmo tempo, corpo sem órgãos: sem órgãos não de forma concreta, como um corpo sem coração ou sem cérebro, mas no sentido de não organizado. O corpo sem órgãos são as multiplicidades; as práticas que desorganizam o organismo e as experimentações possíveis de um corpo que quer existir no mundo sem uma delimitação formal sobre padrões impostos por uma sociedade limitante.
Refletir sobre essas outras possibilidades de se pensar um corpo é um dos pilares que guia essa exposição. Preservando a individualidade de cada obra e pesquisa artística, em comum, os trabalhos aqui reunidos de Ana Neves, Amanda Fahur, Caroline Ricca Lee, Flávia Ventura, Guilherme Callegari, iah’ra e Juliana dos Santos tencionam saberes, formas de pensar e agir, uma vez que os discursos instituídos pelos artistas incidem e disputam os modos como as subjetividades se configuram a partir de um corpo em transformação.
Começando pelo trabalho de Guilherme Callegari, embora suas pinturas se configurem em diálogo com o formalismo, explorando questões da espacialidade, luz e geometria, existe uma implicação subjetiva do corpo muito forte. Primeiro, porque nessa nova fase de sua pesquisa pictórica, o artista abandona os grandes formatos, trazendo uma dimensão da intimidade para suas pinturas, fazendo com que seu corpo crie uma nova relação com o fazer artístico, de forma que esse gesto cause um reflexo no espectador: ao invés da distância, agora experimentamos a proximidade. Em outro aspecto mais subjetivo, a pintura de Callegari passa por uma transformação, a partir que o seu corpo para a experimentar outras formas de sentir o mundo, de uma forma mais intuitiva e espiritualizada e isso faz com que essa busca por uma espécie de ruptura racional, dando vazão para pensar a representação de forma abstrata.
Para pensar os trabalhos de Ana Neves, iah’ra e Juliana dos Santos, acrescento a essa discussão os pensamentos de Denise Ferreira da Silva e seu conceito de Corpus Infinitum, no qual a concepção da filósofa diz que todas as existências – humanas, não humanas e mais que humanas – estão eticamente implicadas, ou seja, todas as coisas são interconectadas. Ao transitar entre desenho, pintura e literatura, Ana Neves busca através de corpos híbridos (humano-fauna, humano-flora, humano-objeto), evidenciar a partilha do mundo todo, que somos: perecíveis e migratórios. Ao criar essas fabulações sobre esse corpo que habita entre os campos da figuração e da abstração, entre o território e a busca pelo pertencimento, a artista evidencia as incertezas inerentes a esse processo de reconhecimento, tanto interno, quanto externo.
No caso de iah’ra, o grupo de esculturas têxteis que fazem parte da exposição partem de um fenômeno da física chamado de sólitons, ou ondas solitárias, na qual uma onda se propaga de forma estável sem nunca perder sua forma original. Essa interação entre esses corpos moles e o espaço articula uma analogia entre elementos geométricos e a percepção para conectar o eu e o mundo, demonstrando que essa interação é uma troca infinita, tensionando as noções de identidade, individualidade, coletividade e existência a partir de um corpo que não mais quer ser lido a partir de uma unica ideia sobre si.
Em meu encontro com Juliana dos Santos, uma pergunta que a artista trouxe ressoa até hoje: qual o limite do corpo? e essa pergunta tem norteado tanto minha relação com as obras dos outros artistas participantes da exposição, quanto o próprio conjunto de obras de Juliana escolhidas para a mostra. Azul é a cor que Juliana dos Santos se dedicou a entender. Há anos criando pinturas com a flor clitoria ternatea, seus trabalhos têm tomado escalas que nos envolvem de tal forma que o corpo passa a vibrar de outras formas, expandindo o conceito da cor para campos como: o social, o político, o imagético, o textual e o sonoro. Nos trabalhos aqui apresentados, as pinturas tomam um outro contexto que desafiam o limite da própria superfície. Em uma relação de escuta muito grande com as composições formadas, Juliana rompe com essa ideia do quadro da pintura, pensando exatamente nesse limite de um corpo. Ao trazer novas formas para se pensar um campo padrão, essas figuras híbridas que se criam a partir desse gesto, nos fazem pensar que um corpo é muito mais do que linhas e contornos. Moldar-se, aqui, não é sobre caber, mas sim sobre expandir os próprios conceitos sobre si.
Se por um lado Juliana está nos apontando processos de expansão a partir de um corpo subjetivo, Amanda Fahur parte da objetividade do seu próprio corpo para ampliar conceitos sobre o mesmo. Quando um corpo entra em colapso, quais são as formas de regeneração e fortalecimento? Essas são algumas das perguntas que a artista tenta responder em algumas de suas pinturas. De forma onírica, quase surrealista, Amanda aponta caminhos para compreender os mecanismos de um corpo que é afetado cotidianamente por fatores externos e como essas implicações afetam todo um sistema estabelecido. As respostas para a cura são múltiplas, mas Amanda opta por um caminho poético de reordenar os fragmentos na busca de uma totalidade.
O corpo em estado de reorganização também são conceitos que permeiam as pesquisas de Caroline Ricca Lee e Flávia Ventura. Para Ricca Lee, o corpo assume um lugar de memórias, onde a artista entrelaça sua existência com arquivos ancestrais diaspóricos, criando ficções para compor existências que se criam a partir de pagamentos, sejam eles históricos ou geracionais. Sob perspectivas feministas decoloniais e queer, as assemblages criadas por Ricca Lee assumem um caráter de sobreposição, não somente de linguagens, mas exatamente desses trânsitos que constituem sua existência, assumindo que, antes de tudo, corpo também é território.
As noções de corpo-território também perpassam o trabalho de Flávia Ventura. em sua pesquisa, a artista investiga o corpo como dispositivo mutável de experimentação sensível. Em sua nova série de trabalhos em encáustica, a partir do momento que Flávia passa a experimentar novas configurações para seu próprio corpo, a pintura abre mão da figuração para encontrar na abstração um espaço para a não-resposta. Dessa forma, a artista propõe um deslocamento de discurso sobre protagonismos e relações de poder sobre gênero, sexualidade e aspectos identitários.
Na dialética de Walter Benjamin, “a imagem é o momento em que o que foi une-se ao que é num lampejo, assim formando uma constelação”. Se para o filósofo imagem é um conceito em suspensão, nessa exposição o corpo surge como uma potência a partir das diversas buscas por liberdade experimentadas pelos artistas, e questionando – mais do que respondendo – de que forma essas práticas podem adentrar o espaço da sociedade.
Carollina Lauriano
curadora