Aline Bispo

Aline Bispo

24 de agosto a
02 de outubro de 2024

Luis Maluf Galeria
Rua Brigadeiro Galvão, 996
Barra Funda, São Paulo, SP

Somatória de Forças

É pura coincidência que Aline e eu, ambos paulistanos de ascendência baiana, tenhamos o mesmo sobrenome. Nós e tantos outros “Bispos” provavelmente descendemos de um certo Antônio Nicanor de Alcântara Bispo, que foi, no final do século 19, o 2º secretário da Sociedade Beneficente União Filantrópica dos Artistas, fundada em Salvador, em 1889. Para além desse parentesco distante, também estamos ligados pelo interesse comum nas forças do sagrado afro-brasileiro.

Aline, que vem trabalhando essa temática em sua obra há quase uma década, segue a trilha aberta por artistas que vieram antes dela, e se coloca ao lado de seus contemporâneos na pesquisa sobre a experiência do sagrado na arte afro-brasileira. Apenas para citar alguns, dentre muitos outros, artistas: Arthur Bispo do Rosário, Mestre Didi, Heitor dos Prazeres, Ronaldo Rêgo, Djanira da Motta e Silva, José Adário, Moisés Patrício, Eneida Sanches, Raquel Cambinda, Antônio Obá, Sheyla Ayó, Nádia Taquari, Rodrigo Bueno, Maria Auxiliadora, Niobe Xandó, Carybé, Terciliano Júnior, Chico Tabibuia, Ana Pi, Renata Felinto, Silvana Mendes, Antonio Pulquerio, Denise Camargo. Essa quantidade de nomes mostra que Aline Bispo não está sozinha nesse circuito artístico que extrai sua força poética do sagrado.

Na exposição individual Somatória de forças, a artista, cuja pintura pode ser observada em empenas de prédios nas imediações da Luis Maluf (Barra Funda), apresenta obras produzidas nos últimos cinco anos, algumas delas inéditas, realizadas sob inspiração do contato com festas mais ou menos conhecidas do calendário afro-brasileiro: Bará do Mercado, Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, 02 de Fevereiro, Nossa Senhora Aparecida, Feira de Baiano etc.

A série Orixás, encantados, santos e voduns, de 2023, como o próprio nome assinala, aproxima em um único gesto poético a estética complexa inerente às religiões afro-brasileiras que, resultantes da diáspora, misturam referências sagradas em um jogo de revela-esconde. Assim, onde se vê a forma de um santo católico, em sua versão revestido de tecido estampado, vê-se também uma divindade africana, seja porque um fio de contas colorido está ali como um lembrete ou porque o nome da obra indica tratar-se de deuses africanos e afro-brasileiros.

Entre as pinturas, a pincelada, ora lisa ora expressiva, retoma ícones sacros como Iemanjá, Santo Antônio, São Benedito, as mulheres da Boa Morte e um Babá (pai em iorubá). Santo Antônio, sincretizado ainda no continente africano com Exú, está posicionado próximo à entrada da galeria. Coberto de tecido preto, sob seus pés saem potinhos de moedas e tiras de cetim sugerindo a multiplicação de caminhos.

A paleta utilizada pela artista se esparrama pela exposição: azul, branco, preto e vermelho. Embora essas cores sejam amplamente conhecidas por seus nomes europeus, elas recebem nas tradições de candomblé angola e jeje nagô nomes próprios de grande utilidade ritual. Assim, na primeira tradição, o branco é luvemba, o vermelho tukule ou tukula, o preto kala; na segunda, o azul é waji, o vermelho osun o branco efun. Quanta beleza plástica emerge da justaposição entre essas cores!

É o azul que organiza a composição fotográfica de Assunção, de 2019. Nessa série, Aline oferece três versões idênticas, mas com modelos diferentes de Nossa Senhora Aparecida. Chutada na televisão em rede nacional em 1995, aqui e noutras partes da exposição a padroeira do Brasil é retomada materializada em jovens mulheres. Eis um estado de ascensão espiritual multiplicada. As mãos seguram um mesmo crucifixo de bolotas de pérola e metal. Outra encarnação da santa padroeira são as representações em gesso produzidas pela indústria do sagrado, modificadas, porém, com o revestimento em tecidos coloridos.

A exposição apresenta duas bandeiras estampadas com a imagem dos gêmeos Cosme e Damião, também conhecidos pelo termo nagô Ibeji. Aline explora também a forma de altar, inspirada pela relação de oposição e complementaridade entre espíritos familiares – rada – ou agressivos – petro, presente na religião Vodu do Haiti. Tal referência ao Vodu confere ao ambiente expositivo a sensação de transição entre zonas de luz e sombra.

Tendo a mistura de referências sacras como ingrediente farto em sua poética, Aline Bispo persegue um caminho no qual admite o valor do sincretismo na cultura brasileira, entendendo que apesar de seus aspectos negativos, no sentido de, historicamente, conduzir à ocultação de práticas culturais de origens africanas, ele também gerou forças inéditas.

Em 2024, os estudos sobre a arte afro-brasileira, cujo marco é o texto de Nina Rodrigues, As bellas artes dos colonos pretos – a esculptura, de 1904, completam 120 anos. Neste momento, iniciativas como a exposição Somatória de forças ampliam e fortalecem o conhecimento sobre a multifacetada história das expressões plásticas de fé no país, que segue inspirando o campo das artes visuais.

Agradecemos a Luis Maluf e sua equipe pelo apoio e parceria na construção desta exposição.

— Alexandre Araujo Bispo