Exposição Individual
15 de novembro de 2025 a
18 de dezembro de 2025
Luis Maluf Galeria
Rua Brigadeiro Galvão, 996
Barra Funda, São Paulo, SP
Boca de Sol
Delson Uchôa
Boca de Sol propõe a pintura como organismo luminoso, um corpo que engole a cor e a converte em incandescência. Entre a geometria e o calor, o gesto e a febre, Delson Uchôa fabrica superfícies em metabolismo luminoso. Sua obra digere o legado modernista antropofágico e o devolve como luz localizada, uma energia que nasce da geografia e se distribui como clarão. Ver e engolir se tornam o mesmo ato.
Morando em Alagoas — um dos centros de maior luminosidade do Brasil —, o artista desenvolve o que ele próprio denomina autofagia: um processo em que a pintura devora a si mesma, digere o próprio tempo e o transforma em nova matéria. Essa operação metabólica, que faz das obras organismos em constante regeneração, também impulsiona a leitura curatorial de Boca de Sol: uma prática que pode ser pensada como solarfagia, quando a luz passa a ser a substância devorada. Aqui, é o sol que alimenta a pintura; ele a faz ferver, secar, queimar, arder em cor. A solarfagia é o modo como a obra se deixa atravessar pela geografia, metabolizando o calor, a radiação e o brilho, ultrapassando o limite visível.
No Brasil, a noção de antropofagia foi convertida pelo modernismo em metáfora de identidade nacional. A ideia de devorar o outro e transformá-lo em cultura “brasileira” criou um mito de origem que acabou reforçando hierarquias e silenciando as cosmologias que o gesto dizia evocar. Em Boca de Sol, essa herança é revisitada de modo oblíquo. A autofagia de Uchôa não devora o outro, mas o próprio tempo. A solarfagia se aproxima mais de uma irradiação, um processo de emanação. Se o modernismo transformou o ato de comer em discurso de poder, aqui o metabolismo da pintura dissolve o poder no calor. O que se digere não é diferença cultural, e sim luz, cor, poeira, o próprio espaço do mundo.
Essa relação com a luz se aproxima de uma heliófilia — o amor radical pelo sol e por seus efeitos, mas também por tudo o que cresce sob sua influência. A pintura de Uchôa parece possuir uma consciência heliotrópica, uma inteligência compartilhada entre seres, plantas, minerais e pessoas. A sabedoria das fibras, dos trançados e das matérias vegetais que compõem suas obras manifesta essa escuta ampliada, uma escuta que inclui o território como agente e não como cenário. O piripiri, o ouricuri, a carnaúba e outras fibras regionais são corpos pensantes, dotados de memória e plasticidade, que participam ativamente da produção das formas. A obra de Delson é, portanto, um sistema coletivo em que o gesto do artista se entrelaça ao trabalho artesanal, à ecologia e às inteligências vegetais que moldam a cor, o relevo e o ritmo da pintura.
Nessa dimensão das tramas e das fibras, ressoa uma reflexão em consonância com o pensamento de Dénètem Touam Bona e sua noção de sabedoria dos cipós — uma filosofia da ligação, do entrelaçamento, do conhecimento que cresce em espiral. Essa correspondência vibracional nos faz perceber que são as fibras, com sua flexibilidade, resistência e memória, que se expandem em direções imprevisíveis, tensionando o espaço e instaurando novas relações entre matéria e tempo. Mais do que suportes, elas atuam como infraestruturas de pensamento, linhas que articulam mundos, geografias e modos de saber.
O processo de Delson Uchôa se desenvolve também a partir do contato com artistas e artesãos que produzem as fibras e artesanias presentes em suas obras. Ainda que nem sempre nomeadas, essas presenças compõem o campo sensível do trabalho. Há, em sua prática, um reconhecimento implícito das múltiplas mãos e saberes que sustentam a materialidade da pintura, uma atenção aos modos de fazer que o antecedem e o ultrapassam.
Essas relações, contudo, não estão imunes às forças da globalização. Cidades inteiras do Nordeste e de outras partes da América Latina vêm sendo transformadas pela lógica de um consumo exacerbado, movido por materiais sintéticos, produtos baratos e descartáveis. O plástico e outras substâncias industriais ocupam o lugar das fibras naturais, dissolvendo tradições de trançado e cestaria que antes mantinham vínculos diretos com o território.
Na trajetória de Delson Uchôa há uma atenção constante a esses deslocamentos. Seu trabalho observa como essas transformações materiais afetam a paisagem, a cor e o ritmo do cotidiano, e como a estética local é lentamente absorvida por circuitos industriais que uniformizam e esvaziam as singularidades do fazer. Ao retornar a certas matérias e modos de feitura, o artista evidencia as tensões entre a vitalidade dos saberes manuais e o impacto do consumo acelerado sobre o território.
A essa consciência compartilhada soma-se uma intuição quase científica. As resinas, pigmentos e vernizes funcionam como neurotransmissores da luz, compondo uma rede sensorial entre humano, planta e mineral. É um pensamento que se aproxima das hipóteses de Sidarta Ribeiro sobre as múltiplas formas de consciência distribuídas na natureza. A pintura realiza, aqui, uma espécie de fotossíntese poética, transformando luz em cor e cor em energia.
Há, no interesse de Delson Uchôa pela luz e pela matéria, uma aproximação possível com saberes ancestrais que reconhecem nas plantas e substâncias caminhos para outras percepções, modos de ver luz e cor que não dependem do prisma solar. No entanto, é preciso reconhecer que essas formas de conhecimento pertencem a contextos específicos enraizados em cosmologias indígenas e afro-ameríndias que não podem ser deslocadas ou apropriadas.
A relação que se estabelece aqui é de fricção, não de equivalência. O trabalho de Uchôa se situa nesse limiar, onde a busca por compreender a luminosidade das coisas convive com a consciência das distâncias e dos limites que separam diferentes regimes de saber.
Em Uchôa, a cor tem temperatura, densidade e localização. A geografia se torna substância, e a matéria age como papiro vegetal, um suporte vivo colhido nas margens, onde a natureza é escrita e lida em brilho. Sua pintura é uma arqueologia expandida da luz, uma investigação sobre como o sol opera nas fibras, nos corpos e nas coisas. Sua formação em medicina deixa rastros na prática artística. A pintura é um tecido vivo sujeito a enxertos, cicatrizações e reaberturas. Cada retorno à obra é um procedimento clínico: oxigenar a cor, reativar a superfície, introduzir resinas e pigmentos como soro em uma carne luminosa. Uchôa entende o ateliê e as paisagens ao redor como descampados heliotrópicos — lugares onde o corpo sai do mofo e busca conhecimento solar.
O artista não pensa sua trajetória por fases, mas por parentescos: trabalhos são primos e primas, famílias erguidas por confluências. Um quadro dos anos 1990 pode receber novas camadas em 2005, 2015 ou 2024. Assim, cada pintura se mantém em trânsito, arquivando suas próprias metamorfoses. Há tintas caducas que se tornam exaltadas, cores desmaiadas que despertam, como se o tempo respirasse dentro da superfície.
Em Boca de Sol, essa pintura de metabolismo aberto é também uma reflexão sobre os limites da visão. Que luz é essa que não passa pelo prisma solar, mas ainda assim incide, vibra e afeta? Durante este processo, Delson Uchôa recordou a obra em néon de Bruce Nauman, The True Artist Helps the World by Revealing Mystic Truths [O verdadeiro artista ajuda o mundo revelando verdades místicas] (1967). Com o tempo, ele reformulou essa frase à sua maneira: “O verdadeiro artista é uma fonte luminosa para se espantar.” Mais do que uma citação, essa lembrança parece condensar o princípio que move sua pintura — a busca incessante por uma luz que não se explica.
Sem negar sua geração e as fontes que o formaram dentro da história da arte ocidental, como a geometria da Bauhaus, Uchôa cria uma coalisão entre essa herança e a geometria popular do Nordeste. Sua pintura é plana, expandida e objeto ao mesmo tempo, uma miragem que pensa o corpo como superfície que queima, que sente e que se transforma. Em sua carnosidade, a pintura respira o sol do lugar e o devolve como clarão.
Ariana Nuala
La Paz, Bolívia, 2025