Incompletude

TATIANE FREITAS

INCOMPLETUDE

26 de Mai – 25 de Jun 2022
R. Brigdeiro Galvão, 996, Barra Funda

Tatiane Freitas (São Paulo) foi uma das artistas participantes da primeira Residência Artística da Usina Luis Maluf, que aconteceu em 2021. A artista faz agora sua primeira individual na ULM, com curadoria de Ana Carolina Ralston, contemplando sua produção mais recente.

Visite a exposição de segunda a sexta das 10h às 19h, e aos sábados das 11h às 17h, na Usina Luis Maluf  – Rua Brigdeiro Galvão, 996, Barra Funda.

 

Incompletude

Tatiane Freitas

 

“A porta da verdade estava aberta, Mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.”

Carlos Drummond de Andrade

 

Permanecer no escuro por medo do futuro incerto ou do passado se repetir atormenta. Como erguer quando um pedaço se vai? Reconstruir com sonhos? O sonho é uma idealização, uma fantasia, um plano ou desenho da mente. O real formato só saberemos quando esse futuro se tornar presente – hoje ele é invisível.

O fogo tem um grande significado espiritual no desenvolvimento humano. Simboliza a transformação, a purificação, o amor, a iluminação, a morte e o renascimento. Tantos sãos os rituais que se utilizam dele para transmutar a vida. Utilizemos o fogo, então, como símbolo do recomeço. É por meio da queima e do derretimento da matéria que se abre o universo de Tatiane Freitas, em Incompletude.

Então estamos marcados por essa falsa busca da completude. Mas hoje, o narcisismo contemporâneo agrega um outro ideal, o da liberdade, que Lacan chama de “delírio de autonomia do neurótico”. Achamos que podemos ser autônomos e sozinhos, que podemos nos bastar. Como casar esses dois ideais? De um lado, a busca de algo que complete o nosso ser e, de outro, uma vontade de viver a liberdade total, sem concessões.

Memória e tempo. Esses são dois dos pilares de uma obra que trabalha a intangibilidade da mente humana. A pós-graduação em neurociência e comportamento corroborou para que Tatiane Freitas seguisse transformando de forma cada vez mais pulsante tal ideal em esculturas. A alternância dos materiais nos leva a refletir sobre nossa própria permanência, sobre histórias que vivemos e sua sedimentação no mundo físico.

De todos os seres que vivem, somos os únicos a ter consciência da inevitabilidade do fim, portanto os únicos a entenderem essa insuficiência. O ser humano é ontologicamente insustentável na sua estrutura, pois tem consciência do fim.

Ele dura o tempo que permanece existindo no seu ser.

A estrutura que nos mantém em pé, que sustenta o corpo e o espírito. Que mantém sóbrio o olhar e a mente. É também sobre isso que se trata a mostra Incompletude. Sobre a dependência total ou relativa que temos de uma base sólida para nos firmarmos neste mundo. Da segurança necessária para existir. Da certeza de ter onde chorar, sorrir e cair. Tais construções são compostas de recordações prévias que habitam nosso ser.

No Mito do Andrógino, em O Banquete, de Platão, éramos seres de quatro pernas e braços que, um dia, foram cortados ao meio por Zeus e condenados a passar o resto da nossa existência em busca da nossa outra metade. Acredito que o conceito de alma gêmea seja esse, o de buscarmos um outro ser que nos complemente nas diferenças e não alguém que seja à nossa imagem e semelhança.

O Teorema da Incompletude de Gödel mostra matematicamente que nenhum sistema é autoconsciente: ele necessitará sempre de um elemento externo para validá-lo. Já na arte, a incompletude aponta para a desordem, pois é a partir de tal incerteza que ela se alimenta, que nasce o improviso e o imensurável. A incompletude na arte dá espaço ao erro e também à chance de criar algo completamente novo e extraordinário. É essa experiência incompleta e, por isso inédita, que se trata a exposição.

diálogos entre a artista Tatiane Freitas e
a curadora Ana Carolina Ralston

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SOBRE O ARTISTA

Os elementos naturais contemplam um repertório complexo e vasto. Se por um lado, temos os elementos químicos da tabela, suas nomenclaturas e aplicações determinantes, de origem natural e artificial, temos do outro, os mais simples, submetidos à banalidade. As transformações destes componentes parecem ser familiares à artista, que em seu vocabulário manual, consegue maleavelmente trabalhar com: rochas, cristais e acrílicos que se moldam, encurvam e assumem novas formas a seu domínio.

A madeira, matéria prima do lar, é cortada em moldes e tábuas que revestem as casas de portas e batentes de janela. A cadeira, objeto criado para o descanso do corpo e repouso dos olhos em todo o entorno, propõe uma pausa para a reflexão sobre a longevidade, uma das inquietudes humanas, mais comuns por entre séculos. Mediante a situação de sermos eternamente ordenados pela condição do tempo, existe o desejo de se manter intacto, inerente ao envelhecimento. Mas como já esperamos, as pernas da cadeira não sobrevivem às intempéries, ficam moles, abrem lascas, desmontam, caem e se estragam, como naturalmente deve ser.

Dialogando com os limites da finitude, Tatiane Freitas confecciona continuidades para as peças, que se alteraram progressivamente. O acrílico se dissolve, e feito água se adapta aos novos formatos e padrões escolhidos pela artista para preencher os defeitos adquiridos pelo objeto. O encontro da madeira com a estrutura invisível do acrílico parece remendar visivelmente a falha, reparando a perda temporal. As cadeiras se sustentam com a matéria fria e sólida, que se molda e endurece em um ato de resistência, configurando um sobreviver perene, fora do domínio do tempo. Enquanto as portas ganham de presente o preenchimento de seu desenho original, agora preservado em sua memória e história.

Texto de Núria Vieira sobre o trabalho de Tatiane Freitas.