Marcia Pastore
Como produzir tensão
26 de agosto a
30 de setembro de 2023
Usina Luis Maluf
Brigadeiro Galvão, 996
Marcia Pastore: como produzir tensão
Um longo fio de nylon. Enroladas por ele, as pernas da artista aparecem em um constante contraponto entre tensão e relaxamento. O mecanismo contido parece estar em uma busca incessante pela expansão, que marca e recria nossa percepção de espaço em relação à própria carne. Como defende o fenomenólogo francês Merleau-Ponty, toda percepção é a realização de um corpo situado radicalmente no mundo. Dessa forma, não existe o que alguns definem como ser humano interior, o ser humano está no mundo e é no mundo exterior que ele se reconhece. É por meio do estiramento entre matérias que percebemos o lugar que ocupamos e é sobre essa visão que somos conduzidos por entre as produções inéditas de Marcia Pastore que ocupam a Usina Luis Maluf, em sua primeira exposição individual como artista representada pela galeria paulistana.
Se temos o corpo como centro da representação artística desde o Renascimento, é na contemporaneidade que tal matéria deixa os moldes e a busca incessante pelas proporções áureas para atuar em seu âmago verdadeiro. É a partir da perda do tecido, da relação deste com o tempo e o desgaste da forma, que ele abdica das perfeições para ser o que é. Mais do que isso, é na intercorporeidade que se estruturam suas modificações e sentidos. As ações de nosso ser mostram a complexidade física que ele se propõe – e isso aparece logo na entrada desta exposição, na obra site specific, parte da série homônima Como produzir tensão. No salão principal, tubos de ferros coletados em ferros velhos pela artista reafirmam o papel importante de deslocamento no uso dos materiais e a mudança causada em tudo que interagimos, seja vivo ou inanimado. Preso a eles, cintas de amarração comumente usadas em transportes de cargas envolvem tais objetos escultóricos espelhando as tesouras do iluminado galpão, localizado na Barra Funda. Aqui está outro importante ponto de reflexão sobre a obra de Pastore: sua instigante relação de peso e balanço com o espaço expositivo e a arquitetura que compõem o território que envolve suas produções.
Desde o fim da década de 1980, a artista investiga a relação entre corpo, espaço e formas tridimensionais diversas, usando a história e a arquitetura dos ambientes como maneiras de expandir suas reflexões. Revisita tradições escultóricas usadas em tempos remotos, unindo-as aos saberes atuais de maneira técnica e, por vezes, intuitiva. Para essas produções, a artista não parte de traçados prévios, mas do real embate entre matérias-primas utilizadas, produzindo uma articulação orgânica entre elas. O resultado coloca a presença humana como eminente ou como rastros de algo que esteve ou passou por ali. Na ausência se reconhece o corpo e a vida.
Essa relação de profunda interdependência com o meio que habita revela-se em outras séries ou famílias criadas por Pastore, como em Exercício de força e direção, composta por linha, agulhas, imãs e aço, e que mimetizam de certa forma a estrutura que forma o teto industrial do espaço. Já em Esculturas mínimas, apresentada no mezanino da galeria, formas corpóreas fundidas em bronze flutuam penduradas por cabos de aço em cima de seus contrapontos em cerâmica, instalados no chão. Tal equilíbrio favorece a sensação de gravidade e reforça a relação entre positivo e negativo, molde e contramolde, cheio e vazio, equação sempre presente na expressiva pesquisa da artista. Outro ponto latente e que volta à discussão nas produções de 2022 e 2023, incluindo a da obra em questão, é a escolha de materiais ordinários e ressignificados, como metais, pedras, fitas e gesso. Tal eleição leva seu percurso de encontro ao movimento povero, do início dos anos 60, que se mostrava atento à compreensão subjetiva da matéria no espaço e à experiência do humano às linguagens culturais, assim como se propõem Pastore.
A estrutura corpórea da própria artista serve muitas vezes como guia para a condução de sua narrativa. Em Pontos de contato, chapas metálicas com as dimensões de Pastore são fracionadas e reunidas por articulações fundidas a partir de moldes de seu corpo. Em outro momento, são suas mãos que deixam o contramolde ser preenchido por materiais como massa de modelar. Seu trabalho torna-se um instigante acordo entre as vontades da artista e do próprio material trabalhado. A tensão se expande pela tridimensionalidade de obras propostas a levar o espectador ao confronto com o próprio corpo e a inevitável passagem do tempo, da perda e da transformação.
Ana Carolina Ralston
curadora
Sobre o artista
Marcia Pastore
Ao longo de mais de três décadas, Marcia Pastore (1964, São Paulo, Brasil) tem desenvolvido uma prática calcada na investigação das possibilidades plásticas dos materiais. Para isso, ela investe na pluralidade, empregando desde estruturas pré-fabricadas como roldanas, sargentos, prumos, à matérias informes, como o gesso, o breu e a parafina, assim como metais moldados em processos de fundição. A interação entre as propriedades desses elementos resulta em operações espaciais que simultaneamente o ocupam e reformulam a partir do agenciamento das linguagens tridimensionais da escultura, da instalação e da arquitetura.
A moldagem sobressai como principal operação do vocabulário de Marcia Pastore, servindo tanto como estratégia produtiva, quanto como metáfora que descreve a ação de seu trabalho no público, convocando-o para uma espécie de dança com as estruturas que ocupam o espaço. O corpo, por sua vez, é central em sua prática, seja pela dimensão indicial dos gestos que organizam a matéria, pelas peças moldadas sobre sua própria pele, ou pela escala antropométrica dos trabalhos. O caráter processual de suas experimentações também se expressa nas fotografias e vídeos elaborados como registros de suas ações no ateliê, sem perder sua potência poética.
Marcia Pastore realiza exposições individuais desde 1990, quando inaugurou mostra no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), em São Paulo, Brasil. Entre as mostras da artista, destacam-se as individuais: Dobros, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ), no Rio de Janeiro, Brasil (2010); Corpo de prova, no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), em São Paulo, Brasil (2017); Contracorpo, na Pinacoteca, em São Paulo, Brasil (2019); e Estrutura exposta, na Fundação Ema Klabin, em São Paulo, Brasil (2021). Participação em mostras coletivas inclui: Em branco, no Instituto Figueiredo Ferraz, em Ribeirão Preto, Brasil (2021); Oito décadas de abstração informal 1940/2010, na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro, Brasil (2018); Arte contemporânea no acervo Municipal, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), em São Paulo, Brasil (2004); O Espírito da Nossa Época – coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, no Museu de Arte Moderna (MAM-SP), em São Paulo, e no Museu de Arte Moderna (MAM Rio), do Rio de Janeiro, Brasil (2001); 5 artistas de São Paulo, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, Brasil (1989). Seus trabalhos integram as coleções da Pinacoteca, São Paulo, Brasil; do Museu de Arte Moderna (MAM-SP), São Paulo, Brasil; da Fundação Marcos Amaro (FAMA Campo), Mairinque, Brasil; e do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), São Paulo, Brasil; entre outras.