Karola Braga e Licida Vidal

histórias da terra

6 de maio de 2023
a 27 de junho de 2023

Galeria Luis Maluf
Peixoto Gomide, 1887

 

histórias da terra

“todo ser vivo é a terra dos outros. Cada espécie é o terreno de vida de um número indefinido de outros atores – vivos e não vivos” Emanuele Coccia

“Que a água que está debaixo do céu se ajunte num só lugar a fim de que apareça a terra.” A frase do primeiro livro da série bíblica, intitulado Gênesis, nos recoloca em confronto com uma das inúmeras versões do início de tudo, de vida e morte. Dos ciclos vitais dos quais fazemos todos parte, brotam ideias díspares, que se iniciam em sua maioria a partir da escuridão. Do tempo em que não temos memórias, do capítulo em que éramos casulos, antes de nossas primeiras metamorfoses, tudo era breu. Nascemos da noite e é só a partir dela que temos consciência da luz. De acordo com os povos originários, em especial os Guarani Mbya, a mãe é escuridade e é por meio dela que tudo toma forma. Rompemos com camadas de terra, pele e cascas em direção à vida, pela qual lutaremos até nosso eterno retorno à terra. Sobre as relações entre sentidos, memórias, permanências e cursos de vida que estão sempre em constante transformação que se trata a exposição histórias da terra e as obras apresentadas por Karola Braga e Licida Vidal na Galeria Luis Maluf.

Como explana o filósofo italiano Emanuele Coccia, “cada espécie é a metamorfose de todas aquelas que vieram antes dela. Uma mesma vida que molda para si um novo corpo e uma nova forma para existir de maneira diferente”. Com esse pensamento em mãos, a mostra que se revela diante do espectador divide-se de forma natural em três momentos nos quais Braga e Vidal refletem e materializam na arte suas respectivas maneiras de enxergar do que são feitas essencialmente etapas vitais.

Na primeira sala, o início é apresentado por meio de uma instalação site specific criada por Vidal em que a artista paulista alaga o espaço expositivo de acordo com sua topografia no intuito de nos colocar à mercê da experiencia de origem, entre céu e mar. Em uma solução com bio fertilizante, duas esculturas suspensas feitas em cerâmica flutuam parcialmente no reduto aquático. Ao lado, negativos de seres do reino vegetal produzidos em gesso e pigmentados pela paulistana Karola Braga reconstroem tal início. Da obra exposta na parede do espaço, exala um suntuoso petricor, cheiro de terra molhada, que nos permite acessar uma infinidade de memórias relacionadas ao nascimento de diversas espécies e seres. A conexão com o sensível é imediata e é nessa sala que se inicia um percurso de experiência e troca entre artista e visitante.

A partir da vivência olfativa e visual, chegamos ao segundo momento da mostra, em que estruturas de ambas artistas estão em embate. De um lado, as representações naturais de Braga são penetradas por uma cromaticidade mais amena e acinzentada e reverberam ao seu redor o cheiro da floresta, úmido e rústico, que traz em si as referências da maturidade de um corpo em pleno vigor. Importante colocar a amplidão de que se trata a pesquisa da artista olfativa, que se desloca por meio de diferentes suportes visuais a fim de nos levar ao âmbito poético da ausência, da presença e de tudo que o cheiro passa a representar na mente humana. Por outro, as estruturas escultóricas de Vidal vão de encontro ao seu recanto natural. Feitas em cerâmica, que nada mais é do que a terra ao passar por uma profunda transformação a partir da temperatura exposta, elas adquirem formas quase animalescas que escorrem pela parede.

Tal preâmbulo desagua em uma sala branca criada majestosamente por Karola Braga. Nela, paira o cheiro da perda, do luto, daquilo que inevitavelmente se apaga apesar da tentativa incessante que temos de contê-lo. Sua essência busca a materialização por meio de um site specific que nos recoloca no espaço imersos em uma reflexão sobre o que está para além da terra, talvez para além da vida. Se na cultura ocidental, a cor preta está atrelada à morte e obscuridade, ao medo e sofrimento, nos ensinamentos orientais tal pensamento se inverte, colocando o branco como tom chave para o momento transcendental de passagem a que todos nós, inevitavelmente, estaremos submetidos. A sala se converte em um santuário sobre tempo e memória.

Todo o conhecimento de si é sempre um conhecimento de outras formas de vida, pois cada forma de vida é uma colagem de espécies. Dessa colagem surgem as sementes, que Licida Vidal recoloca na última sala expositiva na planta dos pés. Em torno da fotografia exposta está a impossibilidade da água, que transborda no início da mostra. Em uma instalação formada de placas de cerâmica, a artista remonta o solo castigado e craquelado pela seca que assola nosso mundo. Se “a natureza cria formas, aparentemente diferentes, por simples modificações de um único órgão”, como disse Goethe (1749-1832), essa visita é um ciclo inexorável do nosso presente, passado e futuro. De um mesmo órgão que passa pelas infinitas possibilidades da vida.

Ana Carolina Ralston
curadora