Não se esqueça do que é Épico

LUIZ ESCAÑUELA

NÃO SE ESQUEÇA DO QUE É ÉPICO

17 de Fev a 26 de Mar 2022
Rua Brigadeiro Galvão, 996
Barra Funda – SP

Épicas são as grandes narrativas que marcam a história. Elas são tão míticas quanto cotidianas, e seu poder de permear nossa cultura e individualidade é profundo e complexo. “Não se esqueça do que é Épico” é um convite para resgatarmos na nossa memória, e na nossa iconografia, quais são as possíveis manifestações épicas criadas na interação das imagens.
A exposição reúne os mais recentes trabalhos do artista Luiz Escañuela. Através da sua pintura, Escañuela desenvolve a nova série através de sobreposições de figuras e texto, numa formação similar a uma colagem desses elementos. As composições tensionam o exercício da especulação poética, em que o espectador ativa sua memória e busca hiper-links para fazer a leitura das obras.

Religião e iconoclastia, presença e virtualidade, referência e apropriação, identidade e contingência. Dentro desse universo criado nos deparamos com a assimilação espontânea entre as imagens, e somos instigados a buscar os significados na subjetividade, em uma tentativa de saciar, pelo menos um pouco, a fome por aquilo que é Épico.

Não se esqueça do que é Épico – Luiz Escañuela
Abertura: 17 de fevereiro de 2022, das 18h às 21:30h (gratuita e aberta ao público geral)
Visitação: de 18 de fevereiro de 2022 a 26 de março de 2022, se segunda a sexta das 10h às 19h, sábados das 11h às 17h.

Local: Usina Luis Maluf – Rua Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda – São Paulo.

 

Texto curatorial de Victor Gorgulho

Na acepção terminológica dos dicionários, iconoclasta é aquele que “quebra ícones”; e, em seu entendimento histórico, é um termo repleto de sentido pagão e de conduta, por vezes, desviante. Mas também é possível entender esta quebra como um processo de análise – como a ação de separar um todo em seus elementos simples.

É a partir desse segundo sentido que o jovem artista Luiz Escañuela vem construindo um rico imaginário poético-visual. Escañuela reúne signos comuns às nossas vivências culturais, às nossas experiências cotidianas e ao inconsciente coletivo para elaborar uma cosmologia visual que impacta, o espectador, primeiro pelo choque temporal que nos apresentam. Com destreza, o artista lança mão de signos e códigos visuais típicos do barroco e de outras formas clássicas da arte em suas telas, em uma estranha – mas contundente – harmonia com signos contemporâneos presentes em nosso imaginário.
Seu domínio de uma pintura, diga-se, propriamente acadêmica, permite ao artista executar um salto transtemporal, em franca rejeição a deixar que sua obra seja dominada por uma narrativa apenas cartesiana ou propriamente lógica.

A justaposição pode aparecer como uma intercessão entre cartografia e tons de pele, entre planos figurativos e colagens com mídias digitais e, sobretudo, entre referências austeras e idiossincrasias contemporâneas. O resultado é a construção de um iconografia própria que esmiúça e investiga temáticas atuais em tom de manifesto. Mas, naturalmente, nos perguntamos, um manifesto em direção ao que? Tampouco o artista parece querer nos dar respostas fáceis, nos impondo, tela a tela, novas e intrincadas composições – frequentemente dotadas de humor – em que perpetua uma espécie de jogo semântico com seu espectador. Em um campo aberto, nada vertical, hermético ou vedado.

A centralidade de temas políticos assimila a vivência do artista enquanto um habitante da periferia do mundo. O uso do vocabulário formal da história da arte europeia serve, então, de componente crítico na subversão das narrativas mestras que estão em jogo em sua obra. Essa sensação de deslocamento entre a forma artística e os conteúdos representados acabam por performar, elas mesmas, as incongruências dos processos históricos que formaram a sociedade brasileira e, mais além, a latino-americana.

O emprego de técnicas hiper-realistas de figuração e as dimensões agigantadas de suas telas não são mero requinte ornamental do artista. Essas práticas refinadas compõem um vetor central para causar uma impressão estética particular – a de esfumaçar em detalhes os limites entre micro e macro. Isto permite uma aproximação visual e conceitual entre relevos e condições geográficas, a materialidade da pele, a condição histórica daquilo que é retratado.

O hiper-realismo fantástico de sua obra, igualmente, alça seu processo gráfico a uma posição bastante particular em um mundo saturado de informação imagética – o de gerar estranhamento pela escolha de uma mídia tradicional como a pintura a óleo para recriar aspectos extraordinários de um mundo globalizado.

Em sua mais recente série de pinturas, que intitula a exposição, “Não se esqueça do que é Épico”, Escañuela realiza obras inéditas que reavivam seu propósito artístico. Espécie de carro-chefe do conjunto, “Saturnália das Commodities”, é uma obra onde torna-se facilmente evidente o processo de iconoclastia reverso aplicado ao universo imagético do artista. A Saturnália -festa pagã que comemorava o solstício de inverno e, por isso, o fim da noite mais longa do ano e retorno do deus Saturno – é tratada como o bacanal dos agentes poderosos da força do capital, à custa do sacrifício de sangue humano. Aqui, mais uma vez, os elementos brutais da mutilação do corpo contrastam com a figuração austera dos personagens em cena. O fundo de azulejos nos lembram um açougue, onde penduram-se pedaços de carne (humana?) e, tal como em brasões imperiais, podemos observar um ramo de cana surgindo ao centro da tela, ao lado de uma plataforma petroleira. Em primeiro plano, uma esfera de cor sangue flutua como um oferenda sobre uma fonte em referência ao Sol que retorna. Mas não custa muito para percebermos a violenta semelhança entre o Sol dado em sacrifício e o círculo central da bandeira brasileira. Esse hibridismo simbólico que permite falarmos em uma iconoclastia reversa: aquela em que a quebra dos elementos figurativos é aplicada em um processo de síntese de uma nova resultante imagética.

Em “Copacabana”, por sua vez, a condição de manifesto de sua produção toma aqui um aspecto ainda mais evidente, explícito. Na tela, observamos as célebres pedras portuguesas que compõem o calçadão da orla do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, um dos entremeados por aquilo que parece ser uma poça de sangue. Mas a obra não é uma simples analogia à realidade brutal do genocídio negro na cidade do Rio de Janeiro – sabemos. Partindo para um nível de leitura macro – dualidade típica de sua obra – ficamos com a impressão de estarmos observando de cima veios de rios barrentos que agonizam sob atividade garimpeira. O tema do garimpo e do desmatamento reaparece em “Os muitos fins da memória”. Nela, Escañuela utiliza-se de uma narrativa irônica para contextualizar uma natureza morta em um terreno devastado pela mineração ilegal. Aqui, mais uma vez, uma temática cara à história da arte aparece apropriada para constituir uma crítica à condição histórica e material do Brasil, derivada de um passado colonial jamais plenamente superado.

A arte de Luiz Escañuela, afinal, opera entre incongruências históricas por meio das formalidades da arte. Seu hiper-realismo fantástico joga luz sobre as contradições da realidade dos países sul-americanos, mas o faz por meio de uma correlação imagética complexa, em que as inúmeras problemáticas dessas sociedades não são tomadas, em sua obra, como elementos fragmentados, mas sim como parte de um todo estrutural e estruturado – por meio das ambivalências nos níveis de leitura que suas obras abrigam. A temática do corpo – seja ele branco, cis, trans, preto, queer – sintetiza estas problematizações a partir da dualidade das superfícies: por vezes a pele aparece maculada, por vezes é a terra que está arrasada. Do drama e do exagero típicos do barroco à uma radical quebra e ruptura com academicismos europeus ao passo em que elementos de origem insuspeita ali também se fazem presente. Escañuela dá sentido crítico, assim, à nossa condição periférica, utilizando-se da língua do dominador mas também dos subterfúgios e caminhos tão próprios, tão nossos – do artista, claro, mas também nossos, enquanto sociedade.

CONFIRA O TOUR VIRTUAL DA EXPOSIÇÃO

SOBRE O ARTISTA

Luiz Escañuela nasceu em 1993, na cidade de São Caetano do Sul.

Desde os 6 anos de idade treina desenhos de observação e a dinâmica das cores. Formou-se em design gráfico e concebeu sua primeira série de obras autorais aos 20 anos, quando começou a estudar artes visuais. Em seus estudos Escañuela entra a fundo nas teorias da arte contemporânea, desenvolvendo uma linha de pesquisa onde passa a usar sua técnica a favor de narrativas conceituais.

Seu trabalho toma como diretriz principal o primor minucioso da técnica hiper-realista à óleo unido às experimentações teóricas sobre a representação anatômica, inserindo-a em novos contextos e lugares. O artista utiliza a representação como um instrumento que converge com a iconografia brasileira para o desenvolvimento de novas narrativas plásticas e conceituais. Ao trabalhar a artesania da técnica junto à temáticas de denúncia, o trabalho converge em possibilidades de fascínio e reflexão que a pintura figurativa ainda desperta nas pessoas, sejam elas entusiastas ou leigas em arte.

Tensionando os limites entre o micro e o macro e as características dialéticas entre o corpo e seu ambiente, sua obra propõe a concepção do ser humano como espécie e ser social, buscando as propriedades da pele e do corpo em justaposição à temáticas históricas, iconográficas e cartográficas brasileiras. Para Escañuela o artista precisa estar atento às questões do seu tempo ao investigar a produção de tempos anteriores, analisando as possibilidades de se propor o novo e o disruptivo.