Licida Vidal
20 de julho a
14 de agosto de 2024
Luis Maluf Galeria
Rua Brigadeiro Galvão, 996
Barra Funda, São Paulo, SP
Oceano Febril
Na primeira mostra individual da artista Licida Vidal (São Paulo, 1984), “Oceano Febril”, no Galpão da Luis Maluf Galeria, o público é surpreendido com um conjunto de obras – duas grandes instalações, seis trabalhos em menor escala e uma série de três vídeos – que se articulam como sistemas em atividade. Os trabalhos poderiam ser descritos como organismos vivos ou, talvez mais precisamente, como construções orgânicas que se associam a elementos como minerais, vegetais, fungos e, eventualmente, pequenos animais como larvas e insetos que interagem e se relacionam nesses ambientes construídos.
As duas instalações, “terral” e “entre a fonte e a foz” são trabalhos que se apropriam da arquitetura da galeria: penduram-se no teto, amarram-se nas vigas, contornam paredes e transformam o espaço – de concreto – num campo fértil, cheio de movimento, em que formas de vida e novas estruturas orgânicas podem surgir. As matérias principais das instalações são terra, argila e água. Dentro desses dois trabalhos, e entre eles, a água circula, penetra volumes de terra, entra e sai de mangueiras, expande-se pelo chão. A água desperta sementes e fazendo-as brotarem, alimenta plantas comestíveis, passa através de filtros, escorre criando pequenas perturbações na lâmina d’água que ocupa grande parte do mezanino. Goteja, limpa, caindo dessas “cabaças de cerâmica” e vaza de um andar para outro da galeria, num movimento vertical que contrasta com a horizontalidade dos lagos, rios e mares, lembrando mais a chuva ou uma queda d’água minguada em tempos de seca.
Trazer a água como matéria plástica é um grande desafio que o trabalho de Licida se propõe. Nosso planeta e nossos corpos são feitos de água, elemento tão ordinário quanto imprescindível para a vida. Brigar com a água é batalha perdida – as recentes inundações no Rio Grande do Sul talvez evidenciem isso da forma mais bruta e trágica. O trato com água exige cuidado: respeito aos fluxos, vazões e a sua forma própria de movimento. Seu peso e pressão aparecem como fortes resistências ao ser manipulada. Olhando tanto para grandes obras de engenharia civil, que desviam o curso de rios, quanto para o ofício de pescadores, pedreiros, encanadores, agricultores, entre tantos que cotidianamente lidam com a água, Licida vai formando um repertório de práticas e possibilidades de manejo. É na negociação constante com aquilo que é próprio da água: ser informe, afeita à dissolução, à evaporação, sua capacidade de permanecer escondida, de penetrar no subterrâneo e, ao mesmo tempo, sua presença física em grande volumes acumulados (oceanos, rios, represas), suas qualidades visuais (superfícies extensas, reflexivas, sensíveis até mesmo à ação sutil do vento) e sua potência – quase mágica – de disparar processos de vida, que se situam os trabalhos.
Nas obras menores, que ocupam a primeira sala, as formas recipientes são constantes: assim como as redes de tecido de “terral” e nos filtros de “entre a fonte e a foz”, aqui encontramos casulos, tigelas, aquários-terrários, bolhas, elementos capazes de reter matérias distintas. Funcionam também como membranas permeáveis que fazem trocas do meio externo com o interno, mas sempre protegendo e envolvendo aquilo que está dentro dele. Os trabalhos partem de uma observação daquilo que costumamos chamar de natureza, onde os processos de troca, interação, nascimento, morte, criação, destruição parecem ter mais autonomia em relação às estratégias de controle desenvolvidas pela humanidade ao longo do tempo. São como pequenos acontecimentos aos quais a artista está atenta e busca apreender em seu fazer: o lampejo de um vagalume, a formação rugosa da casca de uma ostra, a cristalização da água salina, a textura de um casulo.
Nesse conjunto de obras exposto em “Oceano Febril” vemos o trabalho que Licida Vidal desenvolve, dentro do campo da arte, há mais de cinco anos. São processos longos de experimentação, montagem, desvios, retornos. De certo modo, seus trabalhos nunca estão finalizados, pois colocam-se junto ao devir da natureza. Exigem cuidados, atenção, reestruturação. Aqueles que convivem com os trabalhos de Licida são chamados a serem também seus cuidadores: a pesquisarem seus processos internos, como devem ser mantidos, em que lugares podem ser instalados. Estabelece-se assim um vínculo de responsabilidade, cumplicidade e afeto. — Thaís Rivitti