A Terceira Margem da Estrada: Arte Popular Brasileira

Exposição Coletiva

A terceira margem da estrada: arte popular brasileira

Exposição coletiva na Galeria Luis Maluf, com obras de 15 artistas populares brasileiros, curadoria de Renan Quevedo.

03 de fevereiro a
15 de março de 2024

Galeria Luis Maluf
Rua Peixoto Gomide, 1887

A Terceira Margem da Estrada: Arte Popular Brasileira

 A exposição é um recorte da produção amplamente referenciada como popular e conta com obras de 12 artistas de diferentes regiões do país. É também, por que não, um registro presencial e abreviado da pesquisa que acumula mais de 200 mil quilômetros percorridos pelo Brasil. A curadoria envolve mestres, artistas e seguidores e estabelece relações temáticas, visuais e territoriais.

 

Em 1920, a arte popular (utilizarei o termo, embora com ressalvas) virou alvo de pesquisa dos modernistas para a construção de seus processos criativos. Em Movimento Modernista, Mário de Andrade atribui ao popular “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência crítica nacional”. O escritor Galeano a define como um complexo sistema de símbolos de identidade que o povo cria e preserva: gestado pela tradição, estimulado pelo viver cotidiano, permeado pelo inconsciente e repleto de um sentimento de coletividade. É densa, crítica e profunda. 

 

A arte popular, presente em pontuais pinceladas na época de menino, invadiu de vez a minha vida através de um maravilhoso acaso. Foi visitando a inspiradora exposição “Teimosia da Imaginação”, em 2012, curada por Germana Monte-Mór e Rodrigo Naves, que me deparei com a profundidade da produção de 10 artistas brasileiros. A partir daí, sem notar, comecei uma despretensiosa pesquisa que, em 2017, ganhou corpo e se tornou o Novos Para Nós: um mapeamento de artistas por todo o país. Já percorri (e sempre retorno) para as cinco macrorregiões do Brasil a fim de conhecer e reconhecer produções que dialogam com a identidade brasileira. Um sem-fim de caminhos que parece buscar a terceira margem da estrada, numa modesta adaptação do grandioso conto de Guimarães Rosa.

 

Conhecer centenas de ateliês espalhados Brasil adentro possibilita assimilar os repertórios de cada artista individualmente. Nessas horas, é impossível não lembrar do marchand Ruggiero distanciando a arte popular do equivocado termo Naif, que pressupõe ingenuidade – e convenhamos: é tudo o que ela não é. Convivendo com o sergipano Véio e atento aos seus esforços de preservação da identidade sertaneja, é visível que arte popular pode assumir o papel de memória escrita. Foi em uma das muitas conversas com a Noemisa, reconhecida escultora-cronista do Vale do Jequitinhonha, que encontrei “na vida, é preciso sorte e juízo”, ficando evidente a persistência acerca da produção que assume caráter ambivalente. Dentro deste assunto, desde o primeiro momento que ouvi Efigênia Rolim falar sobre sua obra, no Paraná, entendi que o processo de externalizar sentimentos tão íntimos é ora prazeroso ora doloroso, como sugere o conceito de Mutuofagia abordado por Ai Weiwei, e estabelece paradoxos com um dos poemas da artista: “a felicidade não é voar alto, mas ter onde pousar”. 

 

Neste espaço, a repetição de imagens e elementos, o acúmulo de objetos na composição e o uso de cores vibrantes têm protagonismo. As matrizes de xilogravura do pernambucano J. Borges narram histórias vistas, ouvidas ou inventadas, permitindo a recorrência da forma e a possibilidade da alternância de pigmentos. Como se buscassem esgotar vazios, variadas marcas de gesto preenchem as telas de Alcides Pereira dos Santos e as esculturas de Manoel Graciano. A transmissão de conhecimento, muito comum no contexto da arte popular, possibilita a salvaguarda das técnicas, como nas relações pai-filho dos cearenses Manoel e Francisco Graciano e dos alagoanos Dedé e Ismael: ainda com o referencial artístico-paterno, desenvolvem temáticas individuais. Getúlio Damado e Efigênia Rolim se debruçam nos amontoados de elementos cuidadosamente garimpados e criam a partir deles. As cores saturadas utilizadas por Véio e vistas nas máscaras da cavalhada de Delão indicam limites visuais e provocam os olhos para serem descobertas.

 

Por fim, é importante pensarmos o local marginal que a arte popular foi encolhida nas agendas dos aparelhos culturais brasileiros ao longo das décadas. Mais recentemente, por outro lado, parece que o jogo está virando e são vistas importantes iniciativas que buscam introduzir a produção popular nas lacunas de formação dos conceitos de arte brasileira. Fato é que os espaços e políticas públicas ainda são insuficientes para entendermos a importância deste e de diversos outros movimentos. É preciso nos aproximarmos da consciência de vitalidade destas criações e contribuir para a formação de cidadãos atentos à ancestralidade, futuro e permanências. E nos lançar à terceira margem da estrada.

 

Renan Quevedo

Curador